Estudos sobre o Mundo Invertido
Estudos Sobre o Mundo Invertido é uma pesquisa artística do artista carioca Alberto Pereira. O artista destaca percepções acerca da iconografia da internet e de processos digitais, como emojis, interfaces de programa de edições e memes, paralelamente integrando símbolos do mundo material inseridos em um imaginário popular brasileiro, como carrancas, filtros de barro e plantas, o que atribuí aspectos irônicos e contraditórios ao significados usuais dessas imagens, emitindo um senso de dualismo entre a realidade material, realidade virtual, globalização e regionalismo. Os trabalhos da série sugerem questionamentos de como os processos de hiperconexão no contexto de uma globalização neoliberal reduzem as relações e identidades em produtos de consumo.
É interessante apontar que além das inúmeras influências que a crescente algoritmização das experiências provocam socialmente, cognitivamente e culturalmente, são experiências atravessadas pela fotografia que desde o seu surgimento no século XIX vem influenciando nosso modo de experienciar as situações.
Como aponta Sontag:
A fotografia reforça uma visão nominalista da realidade social como constituída de unidades pequenas, em número aparentemente infinito — assim como o número de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa é ilimitado. Por meio de fotos, o mundo se torna uma série de partículas independentes, avulsas; e a história, passada e presente, se torna um conjunto de anedotas e de faits divers. A câmera torna a realidade atômica, manipulável e opaca. É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas confere a cada momento o caráter de mistério. Toda foto tem múltiplos significados; de fato, ver algo na forma de uma foto é enfrentar um objeto potencial de fascínio. A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: “Aí está a superfície. Agora, imagine — ou, antes, sinta, intua — o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem este aspecto”. Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia. (Sontag, 2004, p.18 )
Pereira ao manipular a fotografia para transformá-la em novas imagens
questiona seu status quo, seus sentidos, significados e valores de culto, construindo provocações acerca de uma realidade dissociada, sobretudo em sua semiótica. É notável a apropriação do processo de memetização das imagens e do próprio meme em seu processo de se apropriar e recriar ideias, porém de modo a denunciar esse processo de engendramento de significados evidenciando a imagem enquanto signo.
Parte da série tem a rua como elemento transitivo de algumas obras, o que reitera certa dualidade entre realidade material e virtual, sugerindo uma crítica à crescente aderência das experiências virtuais em detrimento às experiências físicas e até mesmo como estas se influenciam em seus modos de experiência. A internet e as redes sociais deixaram de ser locais estritamente utilitários como fonte de pesquisa, compartilhamento e comunicação para serem locais de entretenimento e comércio. As big techs interessadas em capitalizar através de seus produtos, ditos gratuitos, desenvolvem arquiteturas que incentivam a permanência do usuário e o engajamento a fim de converter em receita financeira através dos anúncios patrocinados pela publicidade, além de ter acesso livre aos dados dos usuários, o que garante o pleno funcionamento do algoritmo, o qual a partir de informações particulares dos usuários e suas interações na plataforma permite que conteúdos de seu interesse sejam entregues, criando um filtro da realidade a partir de interesses pessoais, o que incentiva seu engajamento e permanência. Com a facilidade de acesso pelos smartphones e dispositivos eletrônicos, vivenciamos uma hiperconexão e a produção excessiva de informações através de imagens e textos, direcionando e definindo preferências e percepções, enunciado novos simbolismos e por vezes reforçando estigmas sociais.
Pereira destaca o processo uniformizador e de controle presente nas imagens e representações ao elaborar através da colagem protagonistas infantis, negros e mascarados com características e posturas ambíguas como forma de ruptura visual e narrativa, bem como elementos de referência africana e brasileira, que em analogia com ícones digitais adquirem aspectos enigmáticos e de confronto com a estética mecânica, automatizada e replicável de um modus operandi tradicional do norte ocidental.
Como o nome da série indica, a dinâmica que temos hoje na internet formula um outro mundo, um mundo invertido, que possui uma relação de reflexo, mas como em um espelho, a imagem espelhada inverte a representação real. Pereira através da visualidade confronta os caminhos cognitivos de uma leitura passiva das imagens e suas reproduções. Indicando também como seus valores de referência se modificam através de contextos socioculturais, podendo ser ferramentas de dominação ou enfrentamento.
Aline Moraes
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad.: Rubens Figueiredo. São Paulo, SP:
Companhia das Letras, 2004.